Poucas bandas brasileiras sabem navegar com tanta verdade entre o amor e a desilusão quanto os Paralamas do Sucesso. Com “Uns Dias”, faixa lançada no álbum Bora-bora, Herbert Vianna constrói uma espécie de carta não enviada — ou pior, enviada tarde demais. É uma confissão de amor tardia, embriagada por saudade, mágoa e vertigem existencial.
A música é um retrato cru de um relacionamento que não sobreviveu ao tempo e ao silêncio. Ela fala da distância, do arrependimento e do retorno que chega quando tudo já mudou.
🧠 Análise da letra: amor que escapou pelos trilhos
“O expresso do oriente / Rasga a noite, passa rente / E leva tanta gente / Que eu até perdi a conta”
A canção começa com a imagem poética de um trem que corta a noite — metáfora potente do tempo passando, da vida em movimento, levando tudo e todos, inclusive as chances que não agarramos. É uma cena contemplativa, quase cinematográfica.
“Eu nem te contei uma novidade, quente / Eu nem te contei”
Esse refrão sussurrado carrega a dor do que não foi dito. A repetição é o reflexo de uma mente que remoía coisas não confessadas. É o peso das palavras engasgadas, das emoções mal resolvidas. Às vezes, o que destrói não é o que foi feito — é o que não foi falado a tempo.
🌊 A fuga como tentativa de cura
“Eu tive fora uns dias / Numa onda diferente / E provei tantas frutas / Que te deixariam tonta”
A viagem aqui não é só literal — é emocional. O eu lírico tenta experimentar, fugir, provar outros mundos, outros corpos, mas a ausência do outro continua preenchendo cada canto. O sabor das frutas novas não apaga a fome antiga.
“Eu nem te falei / Da vertigem que se sente”
A vertigem é o sentimento central da canção: a tontura de quem se distancia para se curar, mas só se afasta mais do que ama.
💔 O reencontro que chega tarde
“Eu te procurei pra me confessar / Eu chorava de amor / E não porque sofria”
Essa é uma das confissões mais bonitas da música brasileira. O choro aqui não vem da dor, mas da intensidade do que ainda se sente. É o reconhecimento de um amor que permanece, mesmo depois de tudo.
“Mas você chegou, já era dia / E não estava sozinha”
E aqui, o soco. Quando finalmente há coragem para falar, o tempo já passou. O trem levou o momento certo. A vida andou, e o outro não esperou.
⚡ Da mágoa ao impulso
“Eu te odiei uns dias / Eu quis te matar”
Esses versos finais são intensos e desconcertantes — não porque falam de violência, mas porque expõem a raiva como camada da dor e do amor não resolvido. É o rompante humano de quem esperou demais e se deparou com o fim quando ainda acreditava no recomeço.
Letra de “Uns dias” — Os Paralamas do Sucesso
O expresso do oriente
Rasga a noite, passa rente
E leva tanta gente
Que eu até perdi a conta
Eu nem te contei uma novidade, quente
Eu nem te contei
Eu tive fora uns dias
Numa onda diferente
E provei tantas frutas
Que te deixariam tonta
Eu nem te falei
Da vertigem que se sente
Eu nem te falei
Que eu te procurei
Pra me confessar
Eu chorava de amor
E não porque sofria
Mas você chegou já era dia
E não estava sozinha
Eu tive fora uns dias
Eu te odiei uns dias
Eu quis te matar
🧷 Conclusão: o amor que chegou atrasado para si mesmo
“Uns Dias” é uma música sobre o tempo emocional do amor — que nem sempre coincide com o tempo cronológico da vida. É sobre silêncios que custam caro, viagens que afastam em vez de curar, e retornos que não encontram mais lar.
O eu lírico não é vilão nem vítima. É humano. É alguém que se perdeu de quem amava — e de si mesmo. E essa canção é sua forma de confessar, ainda que tarde demais.