Em 2002, fui no Festival Pop Rock Brasil pela primeira vez. Me surpreendi quando cheguei e descobri que o show do Planet Hemp já havia começado. Por conta de alguma orientação idiota de alguém de cima, a produção foi obrigada a colocar a banda como uma das primeiras do evento sob risco dos caras ficarem sem permissão de tocar. Vale lembrar que a prisão ocorrida anos antes ainda era muito falada. Repressão, censura, burrice. Escolha como quer chamar.
Pula para 2025. Mais de 20 anos depois do fatídico episódio do Pop Rock Brasil. Mais de 30 anos depois da formação, em plena turnê de despedida, o Planet Hemp encontrou problemas para se apresentar em Belo Horizonte. O Befly Hall não aceitou a banda lá. Chame do que quiser. Depois foi a vez de um outro recinto no Belvedere pular fora. Deixo para você imaginar os motivos.
A produção precisou fazer uma verdadeira magia para não cancelar o evento e deixar BH de fora da turnê A Última Ponta. A solução foi o Mercado Distrital de Santa Tereza. Independente de não ser o mais popular ou preparado para eventos assim, se revelou como uma alternativa perfeita para o momento. Como nunca pensaram em usar o coração do bairro mais boêmio de Belo Horizonte em uma referência para eventos musicais grandes? A real é que deu rima. Planet Hemp e Santa Tereza funcionaram — na medida do possível.
Lá do fundo não dava para ouvir bem os momentos de interação de Marcelo D2 e BNegão com o público. Faltava nitidez e às vezes até um grau no volume para compensar a acústica. Porém, não deixou de ser um tipo de show raiz, sabe? Se tratando de uma tour de despedida, fica ainda mais memorável. Grande perda para quem não quis servir de palco para um dos shows mais importantes de 2025. Aliás, financeiramente, considerando o elevado consumo de cerveja que superou as previsões iniciais dos bares, não duvido que tenha batido um certo arrependimento em quem tomou a decisão de não receber a banda.
O Planet apresentou faixas clássicas e mais recentes, como “Jardineiros” e “Distopia” (cujos versos são o resumo perfeito do que vivemos nos últimos anos: “Tá tudo errado irmão, então pega a visão / Pobre defende rico, empregado o patrão / Político vira herói juízes super heróis / Estão acima das leis acima de tudo acima de nós“) para um público renovado. Não estavam lá apenas os quarentões de plantão que seguem a banda há anos, mas muito rostinho jovem sem ser castigado pelo tempo. Em comum, o interesse pela banda e sua mensagem.
O diferencial da apresentação foi uma locução dando tons de storytelling para o show. Uma narração em off marcava o tempo e a trajetória da banda, desde suas origens até eventos históricos que ficaram marcados na história. Foi uma sacada muito boa para a despedida.
Teve também o choque antropológico. Minha esposa ficou olhando certas figuras ali e só falava “não é possível que esse tipo de gente esteja num show do Planet Hemp entendendo o que está sendo dito aqui.” A gente riu, porque o Brasil é isso: hipocrisia vestida de camiseta preta. Nunca dá pra saber se é burrice, se é gente consumindo o som como se fosse neutro (“é só música, relaxa”) ou se é pura desconexão moral. Mas é o retrato perfeito de 2025.
E tinha um peso extra no ar. O Planet Hemp tocou em BH poucos dias depois da operação policial mais letal da história recente do país. Isso entrou no show, entrou nos discursos, entrou no humor da noite. A sensação geral não era “festa de despedida de turnê”; era “a cidade está sangrando e a gente ainda precisa gritar”. Essa tensão deixou o som mais afiado, mais urgente, mas também mais triste. É muito cruel pensar que, depois de trinta anos cantando sobre Estado, violência, proibição e controle, o Planet Hemp está dizendo adeus num Brasil que continua exatamente no mesmo buraco — talvez mais fundo.
Eles queimaram até a última ponta. E valeu a pena.
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