“Além do Que Se Vê” é uma das músicas mais luminosas do Los Hermanos — um abraço em forma de canção. Lançada no álbum Ventura (2003), ela funciona como um convite para acreditar, mesmo quando tudo pesa. Não por acaso, a faixa dá nome ao documentário que registra a intimidade criativa da banda: é uma música sobre olhar fundo, olhar para dentro e olhar para o outro.
A letra, escrita por Marcelo Camelo, combina consolo, poesia e cotidiano de um jeito que só o Los Hermanos domina: o extraordinário revelado na mesa de jantar, no vento que entorta a flor, no último vagão que chega atrasado, mas chega.
“Moça, olha só o que eu te escrevi / É preciso força pra sonhar e perceber que a estrada vai além do que se vê”
A abertura já apresenta o tema central: esperança não é ingenuidade, é força. Sonhar é um esforço ativo, quase um trabalho. É preciso insistir, confiar em algo que ainda não existe.
“Além do que se vê” aqui é promessa, mas também aviso: há dor, há sombra — mas também há caminho depois dela.
“Sei que a tua solidão me dói / E que é difícil ser feliz / Mas do que somos todos nós / Você supõe o céu”
Camelo reconhece a dor da pessoa a quem canta.
Não diminui, não corrige, não resolve — apenas acolhe.
A virada é suave e bonita: quem sofre também imagina o céu.
A dor não destrói a capacidade de sonhar.
É sobre resiliência sensível.
“Sei que o vento que entortou a flor / Passou também por nosso lar / E foi você quem desviou / Com golpes de pincel”
Uma das imagens mais fortes da música.
O “vento que entortou a flor” simboliza as adversidades inevitáveis — o que afeta a gente, o que machuca o lar, o que chega sem pedir licença.
Mas há resistência:
a arte como redenção (“golpes de pincel”),
a delicadeza como força,
o gesto criativo que restaura.
Mesmo quem sofreu foi capaz de criar beleza a partir disso.
“Eu sei, é o amor que ninguém mais vê / Deixa eu ver a moça / Toma o teu, voa mais / Que o bloco da família vai atrás”
Aqui, a música se abre:
o amor íntimo, discreto, que não precisa ser exibido para existir.
Camelo reconhece e legitima esse amor “que ninguém mais vê”.
“Voa mais” é incentivo — não para fugir, mas para crescer.
E esse voo não é solitário:
o “bloco da família” vai atrás.
Há apoio. Há rede. Há pertencimento.
O cotidiano como cura
A segunda metade da música desce para o chão — e é justamente aí que ela brilha mais.
“Põe mais um na mesa de jantar / Porque hoje eu vou praí te ver”
O extraordinário mora nos gestos simples:
sentar à mesa,
dividir o pão,
ver quem a gente ama.
“E tira o som dessa TV / Pra gente conversar”
É quase uma cena doméstica, mas profundamente simbólica:
calma, afeto, presença real.
O contrário da anestesia.
“Diz pro Bamba usar o violão / Pede pro Tico me esperar / E avisa que eu só vou chegar / No último vagão”
Aqui, o clima é de comunidade.
A música convoca personagens, amigos, músicos — quase uma roda de samba, quase uma família estendida.
“Último vagão” não é atraso:
é o jeito humilde, imperfeito e cotidiano de quem chega, mas chega com verdade.
“É bom te ver sorrir / Deixa vir a moça / Que eu também vou atrás / E a banda diz: assim é que se faz!”
O ápice emocional da música.
Há alegria — não eufórica, mas mansa, afetuosa, merecida.
A “moça” é o símbolo da sensibilidade recuperada, da esperança voltando a aparecer depois de um período de solidão.
E quando a banda — metáfora da vida, da comunidade, da arte — diz “assim é que se faz”, é quase um rito de passagem:
celebrar o afeto é o caminho.
Letra de Além do que se Vê
Moça, olha só o que eu te escrevi
É preciso força pra sonhar e perceber
Que a estrada vai além do que se vê
Sei que a tua solidão me dói
E que é difícil ser feliz
Mas do que somos todos nós
Você supõe o céu
Sei que o vento que entortou a flor
Passou também por nosso lar
E foi você quem desviou
Com golpes de pincel
Eu sei, é o amor que ninguém mais vê
Deixa eu ver a moça
Toma o teu, voa mais
Que o bloco da família vai atrás
Põe mais um na mesa de jantar
Porque hoje eu vou praí te ver
E tira o som dessa TV
Pra gente conversar
Diz pro Bamba usar o violão
Pede pro Tico me esperar
E avisa que eu só vou chegar
No último vagão
É bom te ver sorrir
Deixa vir a moça
Que eu também vou atrás
E a banda diz: Assim é que se faz!
Sei que a tua solidão me dói
Sei aquela mesa de jantar
“Além do Que Se Vê” é música de cura
A canção inteira é um convite para:
-
não desistir de sonhar,
-
não se envergonhar da dor,
-
confiar nos laços,
-
encontrar beleza no ordinário,
-
perceber que existem mundos além do imediato.
É uma música que não nega a tristeza, mas não se entrega a ela.
Ela lembra que o amor — discreto, cotidiano, artesanal —
é o que nos faz sobreviver ao vento que entorta as flores.
E faz isso com a ternura e a delicadeza que só o Los Hermanos sabe construir.

